domingo, 19 de fevereiro de 2006

Primeiro, houve Glauber; depois, Rogério

INÁCIO ARAUJO
crítico da Folha

Primeiro, houve Glauber. Depois, Rogério. Os maiores talentos que o cinema brasileiro produziu no sonoro. Glauber foi o Moisés que atravessou o deserto da indiferença crítica e levou o cinema brasileiro ao que considerava o início de sua história. Foi um nacionalista à moda clássica.

Rogério chegou depois, em 1968, com o regime militar se fechando e em plena redescoberta de Oswald de Andrade e sua antropofagia. Se Glauber sentia intensamente a necessidade de mostrar o Brasil, Rogério sentia a necessidade de mostrar cinema. (Inútil dizer: para Rogério existir, era preciso que Glauber, o pai, tivesse existido antes). Não era mais Rossellini que lhe interessava, mas Orson Welles, Godard.

Assim era "O Bandido da Luz Vermelha": Godard, Welles. Mais o rádio, as manchetes de jornais, a Boca do Lixo, o Brasil berrante e aberrante que se consubstanciava na nova metrópole, São Paulo. Em vez da política, obsessão glauberiana, o banditismo, a revolta inútil, desesperada contra uma vida que, sabe-se, não vai mudar.

E o "Bandido" era um filme de ação. Feito para encher cinemas e cair no gosto do público, o que aliás aconteceu. Mas o Brasil já vivia o fechamento político. O pessimismo que o "Bandido" anunciava agora tinha tudo para se consolidar. Rogério acabou, depois de "A Mulher de Todos", construindo uma obra quase inteira no negativo.

No centro dela, sua obsessão: a frustrada passagem de Welles pelo Brasil, espécie de prova de nossa impossibilidade histórica de chegar a qualquer coisa ou lugar. Glauber curtia o Terceiro Mundo, que queria afirmar. Rogério achava isso o fim da picada: "O Terceiro Mundo vai explodir", dizia um anão histérico do "Bandido".

Deve-se dar atenção a Ivan Cardoso, para quem por muitos anos, no Rio, a obra de Rogério acabou permanecendo à sombra da do amigo Júlio Bressane. Ao retornar a São Paulo, e ao reencontrar o montador Silvio Renoldi ("Bandido"), sua obra passa por um último e magnífico florescimento, representado por "É Tudo Verdade" e "O Signo do Caos".

Este último, obsessivo, repetitivo, debate-se com a impossibilidade de mostrar --resultante da frustração de Orson Welles. Como se "That's All True", o filme brasileiro de Welles, nunca concluído, fosse o signo de nossos fracassos, e das políticas cinematográficas criadas para alimentar mediocridades, negócios cinematográficos --mas não cinema.

"Você ainda não viu nada! Nem vai ver!" é o achado amargo deste filme dotado de uma radicalidade que nem o público, nem o "establishment" parecem, hoje, interessados em cultivar. Mas nem por um isso um filme menos notável e um fecho de trajetória digno do grande cineasta Rogério Sganzerla.

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