Cahiers. – Teus Contos Morais parecem ligados entre si um pouco à maneira das narrações dum mesmo livro, quase capítulos de uma novela. Por outro lado, dão a sensação de referir-se constantemente a esse gênero literário. Todavia, você escreveu que o cinema estava à frente com todo respeito à literatura...
Rohmer. – Se o escrevi, equivoquei-me. O que creio é que o cinema não tem por que se preocupar com a literatura. Dito isto, pode partir-se duma obra escrita. Que seja antiga ou moderna, carece verdadeiramente de toda importância, já que o essencial é fazer um cinema moderno. Tudo que é bom é necessariamente moderno na medida em que não se parece com o que foi feito anteriormente. Eu prediquei certamente um cinema não-literário, e realizei os Contos Morais, que são descaradamente literários, ainda que só venham a ser pelo papel importante que executa a interpretação. Gosto de mostrar no cinema coisas que parecem repugnar a transpiração cinematográfica, expressar sentimentos que não são filmáveis, porque estão profundamente metidos na consciência. Nos Contos Morais, queria mostrar deliberadamente a reação consigo mesmo. É por esse motivo que estão dispostos em primeira pessoa e que possuem um comentário. Tratam do retrocesso que alguém pode tomar a respeito de seus gostos, desejos, sentimentos, respeito a si mesmo. A personagem fala de si e se julga. Portanto, meus Contos Morais não são literários, são adaptações cinematográficas de obras literárias, e, quando as rodo, tenho claramente a impressão de ser o realizador de uma obra preexistente. Nisto, estaria próximo a Leenhardt. Bazin dizia que Les Dernières vacances era um filme de uma novela que não havia sido escrita.
Cahiers. – No entanto, seu cinema seria tanto introspectivo como objetivo: você mostra alguns tentando achar solução para problemas que estão, no fundo, em si mesmos...
Rohmer. – Pois. O que me irrita, o que não gosto do cinema moderno, é o modo de reduzir as personagens a seu comportamento, e achar que o cinema não é mais que uma arte do comportamento.
Na verdade, devemos mostrar o que está além do comportamento, ainda sabendo que só se pode mostrar o comportamento. Gosto que o homem seja livre e responsável. Na maior parte dos filmes, é prisioneiro das circunstâncias, da sociedade, etc. Não se vê no exercício de sua liberdade. Liberdade que talvez seja ilusória, mas que cabe a esta denominação. Isso é o que me interessa, isso é o que evidentemente deve contrariar o cinema, arte física, materialista, não somente empírica, mas incluso empirista, já que o homem só se define por aquilo que faz. Creio que o gênio do cinema resida na possibilidade de ir-se além deste limite e descobrir outra coisa. Talvez os Contos Morais, que na verdade constituíam um único filme, permitiram-me recorrer este caminho, ir-me além das aparências.
Cahiers. – Algo que coincide com o que Pasolini disse dos grandes momentos do cinema moderno: ultrapassar a limitação materialista do cinema para apresentar certo caráter onírico da existência...
Rohmer. – A palavra me interessa de forma bem particular na medida em que meus Contos Morais têm certamente um lado onírico. Todos são sonhos. Os sonhos estão construídos pelo cérebro, que é uma máquina eletrônica. Toda ficção é um sonho.
Cahiers. – Mas, como resolver este paradoxo: um cinema que seria a um tempo de comportamento e de sonho?
Rohmer. – Não é um paradoxo. Só se pode mostrar o comportamento, e ao mostrá-lo se pode ir mais longe. Não posso aceitar a idéia de um cinema que fora outra coisa que não um cinema do comportamento, que não fora objetivo. O estilo subjetivo no cinema me parece uma heresia. Uma heresia inteiramente condenável e pela qual não posso sentir piedade. Murnau ou Hitchcock só recorreram a ela por coqueteria e de uma maneira extremamente passageira ao longo do filme. Resulta-me impossível confundir a realidade com a imagem mental. Não se pode confundir a torre Eiffel com a imagem que se tem dela. Ou em tal caso temos uma alucinação. Isso é outra coisa, mostrar alucinações é concebível. Mas a torre Eiffel tal como a imaginamos se distigue obrigatoriamente da torre Eiffel tal como a percebemos. É o que observava Alain a propósito do Pantheon, é lógico e evidente. A imagem mental é necessariamente distinta da imagem objetiva. Eu não vejo o que imagino, eu construo. Tudo que pudesse encontrar na imagem mental, haveria posto a mim mesmo. Mas, se projeto algo sobre a tela, isso me é oferecido, tudo procede do objeto, nada de mim. O espectador, portanto, não poderá de nenhuma maneira identificar uma imagem que seria uma imagem mental da heroína a uma imagem objetiva do que ela vê. É absolutamente impossível. Todavia, em alguns filmes, não se sabe se o que é apresentado é objetivo ou subjetivo. Por conseguinte, é necessariamente falso, já que um problema parecido não se projeta na vida.
O antigo e o novo - Éric Rohmer entrevistado por Jean-Claude Biette, Jacques Bontemps e Jean-Louis Comolli, Cahiers du Cinéma nº 172, novembro de 1965
2 comentários:
Essa entrevista já foi reproduzida para o português?
Não que eu saiba.
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